Salomon Koninck. Filósofo com livro aberto, 1645
Salomon Koninck.
Filósofo com livro aberto, 1645

por Jr. Fernandes

                           

“Se este mundo fosse isento de miséria e de dor, tornar-se-iam [os homens] a presa do tédio, e na medida que pudessem fugir a este mal, recairiam nas misérias, nos tormentos, nos sofrimentos” – Shopenhauer, Dores do mundo [1]

Poderão alguns pensar pelo título desse fragmento que estarei a discorrer sobre uma peça de autoajuda ou que essas migalhas são pílulas panaceicas para anestesiar a dor do homem jogado e perdido no abismo do vazio do mundo. Não é este o caso. Queremos, apenas, tão-somente, apreciar algumas das belas passagens e exemplos que a filosofia nos dá como consolação para o homem melancólico dos tempos hodiernos, preocupado mais com suas vantagens e o instante de sua satisfação pessoal.

Comecemos, então, por um fato ocorrido com o filósofo Zenão de Cicio (335-264 a.C.). Narra-nos Diógenes Laécio em Vida, Doutrinas e Sentenças dos Filósofos Ilustres que, quando foi a Zenão anunciado o naufrágio no qual tudo que possuía fora tragado pelo mar, teria dito: “a fortuna quer que eu filosofe sem nenhum embaraço”. A história da Filosofia dá-nos conta que Zenão depois do incidente e agora pobre, fundou o Estoicismo (gr.: Stoa), corrente filosófica que tinha como fórmula “suporta e renuncia” (sustine et abstine). De igual modo, consola-te, pois, com o que não pode ser mudado, nem modificado.

Pode o leitor, precipitadamente, depois de ter lido até aqui, formular a conclusão de que se quer induzi-lo a apegar-se a um modus vivendi asceta ou estoico. Não é este o fim que nos move. Tal pretensão está fora de cogitação. Todavia, não se pode negar que nos tempos de agora, prevalece, com efeito – a não ser para os temperantes – o dogma de que o consumo desregrado e regado ao supérfluo encantam cada vez mais o indivíduo jogado sem âncora ou porto onde possa atracar a embarcação de sua existência. Talvez, mormente, sejam para esses as palavras escritas aqui, pois, como que à deriva, vão se deixando levar…

Em vista disso, acertadamente, Aldous Huxley, bem traduziu – já em sua época – esta indisposição do homem para com valores perenes ao perceber sua preocupação apenas com o imediato, por isso bem descreveu as aspirações deste homem moderno: “Dê-me televisão e hambúrguer e não me venha com sermões sobre liberdade e responsabilidade”[2]. Dessa maneira, Huxley sintetiza e anuncia como seria o admirável mundo novo, no qual o homem é vítima de seus próprios desejos. Diante disso, consola-te, pois, com os valores imateriais e perenes.

A busca incontrolável pela diversão a qualquer preço, isto é, pelos prazeres sensuais, encaminham o ser humano a viver esteticamente, como um arquétipo de Don Juan desses novos tempos.

Assim, nesse viver mergulhado apenas nas questões que lhe oferecem prazer, o homem vive o instante ( para usar uma expressão kierkegaardiana). Vale, tão-somente, o estágio sensual (estético) da existência, que o move incessantemente na busca do prazer pelo prazer. Depois, quando tudo se esvai, ei-lo então depressivo, melancólico e vazio. Surge aí o desespero, pois o instante é fugaz e quando se vai deixa apenas um buraco e estrago no ser do homem. “Deserto e vazio. “Deserto e vazio. E as trevas à beira do abismo”[3]; assim, com palavras do poeta T. S Eliot, assinalamos este momento. Consola-te, pois, com aquilo que não tens e que não te levas ao desespero por não ter.

Continuemos. Com Sócrates – o filósofo das ruas – surge a recomendação para o ato de refletir, isto é, filosofar. Diz ele: “uma vida sem reflexão não merece ser vivida”. Da mesma maneira, Sêneca (4 a.C.? – 65 d. C.), endossa a importância do ato reflexivo: “Vou dizer-te, então, o que me reconfortou; mas antes quero dizer-te que essas coisas em que encontro alento tiveram para mim a eficácia de um remédio; os bons auxílios transformaram-se em remédios, e qualquer coisa que eleve a alma aproveita também ao corpo. Os estudos foram minha salvação, devo agradecer à filosofia se consegui me levantar da cama, se me curei: a ela devo a vida, mesmo que essa seja a menor dívida que tenho com ela”[4]. Qual Sêneca e Sócrates, consola-te, pois, com o pensar e o refletir sobre as coisas.

Bem verdade é que o ser humano, consumido pela velocidade dos dias e o progresso desenfreado, não tem tempo para refletir sobre a vida, isto é, pensar filosoficamente. Virou ele prisioneiro da própria teia que teceu, assim como o personagem principal de 1984, de George Orwell, o homem contemporâneo (ou pós-moderno) está sendo (ou foi) reduzido “a uma mera larva de homem, que vive uma vida desprovida de qualquer sentido”[5]. Sua existência limita-se à busca pelo sucesso e a vencer o outro. Se isto é verdade, devemos compará-lo a Sísifo, “condenado pelos deuses a carregar, nos Infernos, uma rocha para o alto de uma montanha, sem que esse trabalho jamais termine, porque, ao chegar ao topo, a rocha cai de suas mãos e volta a cair no vale”[6]. Como o personagem de Camus, o homem parece condenado a realizar um trabalho infernal, onde a busca pelo topo e primeiro lugar do podium tiram-lhe a liberdade e a felicidade. Consola-te, pois, em ser feliz e realizado, mesmo que não tenha chegado ao cume do sucesso.

Mas e a felicidade? Ah, a felicidade! Todos querem tê-la como fiel companheira. Mas isso não é possível. A condição humana indica que ser feliz é algo que depende de como estamos e sentimos em determinado momento. Assim, se somos, por exemplo, pegos de surpresa com a notícia da morte de alguém que amamos, mesmo vivenciando um grande momento de alegria, tudo muda. E ainda, se não somos capazes de se contentarmos com o que possuímos, somos infelizes por não possuir o desejado, e isso pode gerar até um sentimento de inveja. A respeito disso, vejamos como Madame du Chatelet tratou desse problema: “Um dos grandes segredos da felicidade consiste em moderar nossos desejos e amar as coisas que possuímos. […] só somos felizes com desejos satisfeitos; portanto, só devemos permitir-nos desejar as coisas que pudermos obter sem excesso de cuidados e trabalhos, e este é um ponto sobre o qual muito podemos para nossa felicidade. Amar o que possuímos, saber desfrutá-lo, saborear as vantagens de nossa situação, não deter demasiado os olhos naqueles que nos parecem mais felizes […] é a isso que devemos chamar de felicidade […] Para desfrutá-la, é preciso curar ou prevenir uma doença de outro tipo, que se opõe totalmente a ela e que é muito comum: a inquietação”[7]. Assim, consola-te, pois, a manter o espírito sereno, livre das inquietações e perturbações da coisa desejada.

Contentar-se com aquilo que está dentro de nossas possibilidades – eis uns dos segredos do ser feliz. Entretanto o que se vê, nesses tempos de corrida incessante contra a morte, é a criação de uma felicidade superficial, forjada nas academias, nas vitrines dos shopping centers, nas cirurgias plásticas etc. A velhice é um fantasma de que todos têm medo. Por isso, ninguém mais quer envelhecer, pois isso significa marcar encontro com a morte. Assim, a busca ilimitada pelo bem-estar material aflige o homem de hoje. Todavia, é debalde essa luta e podemos sentir isso nas palavras de Pessoa ao dizer que “o homem é um cadáver adiado”.

A felicidade artificial, portanto, substitui dia após dia a felicidade espiritual. E por que isso aconteceu? Segundo Giovanni Reale, isso “aconteceu porque a abundância dos bens materiais, em vez de preencher o homem, o esvaziou. Minou e, portanto, comprometeu sua consistência e densidade moral.”[8]

Nesse sentido Platão, em Apologia de Sócrates, registra a receita de felicidade prescrita por seu mestre: “Estou tentando apenas convencer-vos, aos mais jovens e mais velhos, de que não deveis preocupar-vos com os corpos, com as riquezas ou com alguma outra coisa antes de vos preocupardes primeiramente com a alma, de forma que se torne o melhor possível, afirmando que a virtude não nasce das riquezas, mas da própria virtude vêm, aos homens, as riquezas e todos os outros bens, tanto privados como públicos”[9]. As palavras do filósofo não estão insinuando que devamos ser descuidados com o nosso corpo, o teor delas tem conotação de que a matéria não deve prevalecer sobre o espírito.

Por fim, resta-nos ainda falar sobre como devemos nos consolar diante do inevitável – a morte. Imagine, se fôssemos imortais; alguns iriam dizer que essa vida seria um tédio, outros iriam se achar deuses, outros tentariam inventar o suicídio etc. O certo é que iremos todos morrer: amanhã, ou depois de amanhã, ou quem sabe hoje. A respeito disso, é digno de registro este célebre fragmento de Schopenhauer: “[…] somos escravos do querer viver, que torna em nós a aparência ilusória de uma vontade individual. Lutamos selvagemente uns contra os outros para conquistar riquezas e honras que a morte logo nos arrancará. Somos escravos do desejo, deste desejo que é sempre sofrimento – sofrimento da necessidade enquanto não satisfeita, sofrimento do tédio quando podemos obter tudo o que desejamos. ‘A vida oscila, como um pêndulo, do sofrimento ao tédio’. Por outro lado a necessidade, a necessidade não cessa de renascer das cinzas e ‘a satisfação que o mundo pode dar aos nossos desejos assemelha-se à esmola hoje dada ao mendigo e que o faz viver o bastante para estar faminto amanhã”.

Também, conhecedores da finitude humana, os imperadores romanos colocavam escravos nas bigas dos generais que triunfavam nas batalhas para recitarem a seguinte frase: memento mortale est – lembra-te que és mortal; era o antídoto da arrogância e orgulho. Noutras palavras poder-se-ia dizer como Salomão: Vanitas vanitatum, et omnia vanitas – vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Ou como disse Schopenhauer: “Quão longa é noite do tempo sem limites comparada com o curto sonho da vida!”[10].

Por fim, consola-te, pois ela há de vir. Sobre isso Montaigne diz que “não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento”[11].

Consola-te, pois…

BIBILIOGRAFIA

MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos. Trad. Mário Pagotto Marsola. São Paulo: Paulus, 2001.

REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os tempos atuais. Trad. Silvana Cobucci Leite. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso. São Paulo: DPL editora, 2007.

SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo. Ediouro – (Coleção Universidade)

[1] SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do mundo, p. 127

[2] Apud. REALE, Giovanni. O Saber dos antigos – terapia para os tempos atuais, p. 12

[3] Apud REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7

[4] Apud, Idem, Ibidem, p. 16

[5] Idem, p. 9

[6] REALE, Giovanni, Op. cit. p. 163

[7] Apud SANTANA, Edilson. Filosofar é preciso, (epígrafes)

[8] Op. cit, p. 94

[9] Apud REALE, Giovanni. Ibidem, p. 7

[10] Dores do mundo, p. 128

[11] Apud MORRA, Gianfranco. Filosofia para todos, p. 81

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